quinta-feira, 28 de março de 2013

Jacques-Martin Hotteterre – Principes de la Flute Traversiere (1707) – Primeira Parte (Capítulos I a VI)




Jacques-Martin Hotteterre (1680?-1760?) pertenceu a uma família de renomados instrumentistas e luthiers de instrumentos de sopro. Conhecido também como Hotteterre “le Romain” – para diferenciá-lo de um parente com o mesmo nome –, muitos creditam a Jacques-Martin a “invenção” do traverso barroco de uma chave só. Um dos flautistas mais proeminentes de seu tempo, Hotteterre era presença frequente em sessões privadas de música na corte do Rei Sol, Luis XIV. 



No vídeo acima, é possível ver e ouvir um “traverso Hotteterre”. O pai de Hotteterre “le Romain”, Martin, já construía flautas nesse estilo, passando para seu filho e aprendiz o conhecimento de construção da mesma. É importante ressaltar que não há documentação histórica que sugira que a flauta transversal de uma chave tenha sido produto da inventividade de apenas uma pessoa ou clã, de forma que não se pode creditar a um homem apenas ou até mesmo a uma família a “invenção” de tal instrumento. Deixando isso de lado, o tipo de flauta que chamamos hoje de “traverso Hotteterre” representa bem o instrumento em voga no princípio do barroco francês. O Landesmuseum Johanneum, localizado em Graz, abriga uma flauta fabricada muito provavelmente por Martin Hotteterre (pai de “le Romain”), afinada com o lá em 392hz. As flautas Hotteterre presentes em museus em Berlim e em São Petersburgo (A=400hz) foram avaliadas como réplicas feitas no século XVIII.



PRINCIPES DE LA FLUTE TRAVERSIERE, OU FLUTE D’ALLEMAGNE. DE LA FLUTE A BEC, OU FLUTE DOUCE, ET DU HAUT-BOIS, DIVISEZ PAR TRAITEZ.



“Princípios da flauta transversal, ou flauta alemã. Da flauta de bico, ou flauta doce, e do oboé, divididos em tratados”. Esse é o título da publicação feita por Jacques-Martin Hotteterre em 1707. Não se espante! A publicação trata mesmo da flauta doce e do oboé, além de tratar da flauta transversal. O tratado é dividido em três partes, uma para cada instrumento. A primeira parte é a que trata da flauta transversal.



CAPÍTULO I – Da situação do corpo e da posição das mãos

Hotteterre escreve: “Como é necessária para que se alcance a perfeição a prática de exercícios nos quais seja possível unir a graciosidade à habilidade, começarei este tratado com uma explicação acerca da postura que deve ser mantida ao tocar a flauta transversal.”. Estando o flautista sentado ou de pé, é aconselhado que este mantenha uma postura ereta, sua cabeça mais levantada do que abaixada e um pouco virada na direção do ombro esquerdo. As mãos devem permanecer numa posição elevada, mas sem levantar os cotovelos e os ombros. O indicador da mão esquerda permanece dobrado para dentro e o braço esquerdo deve permanecer próximo ao corpo. Caso o flautista esteja de pé, o pé esquerdo fica à frente e o peso do corpo é apoiado no quadril direito – “tudo isso sem qualquer tensão”, diz Hotteterre. O autor também enfatiza que, ao tocar, deve-se evitar movimentar o corpo e a cabeça com intuito de marcar os tempos do compasso.



A imagem acima está presente na repartição do tratado dedicada à flauta transversal, logo no primeiro capítulo. É a ela que se deve fazer referência ao ler as indicações posturais dadas pelo autor: as letras presentes na imagem estão relacionadas com as letras no trecho transcrito que se segue. Mas lembre-se: a peruca é opcional!



“É necessário colocar a mão esquerda (A) no alto [da flauta; ou seja, nos orifícios da flauta mais próximos do bocal]. Segurar a flauta entre o polegar e o primeiro dedo (B). Dobrar o indicador para baixo. Armar os dedos de forma que o primeiro e o segundo [indicador e médio] fiquem um pouco arredondados e o terceiro [anelar] ligeiramente mais alongado. No que diz respeito à mão direita (C), é necessário manter os dedos quase retos: o indicador levemente dobrado para dentro e o polegar diretamente abaixo do dedo do quarto orifício [o próprio indicador da mão direita] ou um pouco mais abaixo[*]. O dedo mínimo permanece acima da flauta, entre o sexto orifício e a chave que há no pé (...). Deve-se segurar a flauta quase que reta, inclinando-a um pouco na direção do pé [da flauta] (D).” (* É importante esclarecer que Hotteterre usa os termos “alto” e “baixo” para expressar distâncias relativas ao orifício do bocal da flauta. Uma posição “alta” é aquela que está mais perto do bocal; uma mais “baixa” está mais afastada dele e, portanto, mais próxima do pé da flauta. Assim, no trecho acima, quando Hotteterre diz que o polegar da mão direita pode ficar um pouco mais “abaixo”, ele quer dizer que o polegar pode ficar, na realidade, um pouco mais à direita ou, em outras palavras, um pouco mais perto do pé da flauta.)



CAPÍTULO II – Da embocadura

Hotetterre já começa esse capítulo reconhecendo a dificuldade que é discutir apenas com palavras esse assunto tão delicado da prática flautística: a embocadura. Como forma de amenizar um pouco a impossibilidade de demonstrar claramente como ela deveria ser feita, ele pede que o leitor se remeta à imagem presente no primeiro capítulo. Não obstante, ele sabe que, em se tratando desse tópico, nenhum método escrito tem a mesma eficiência que o contato pessoal com um professor.



Hotetterre aconselha que o leitor faça sua embocadura através do método que hoje conhecemos como “sorriso forçado”: “Não se deve projetar os lábios. Pelo contrário: deve-se repuxá-los com os cantos da boca, de forma a deixá-los unidos e aplainados.”. Em seguida, ele recomenda que, na frente de um espelho, o leitor gire a flauta para dentro e para fora ao mesmo tempo em que sopra moderadamente, a fim de encontrar o ponto onde a flauta ressoa melhor.



CAPÍTULOS III, IV, V E VI – Dedilhados e trinados

Os capítulos terceiro, quarto, quinto e sexto tratam dos dedilhados empregados para a emissão das notas musicais e dos dedilhados empregados para a execução de trinados. Hotteterre tem a atenção de escrever um pouco sobre dedilhados que geram as notas musicais de emissão mais difícil e/ou que necessitam de ajustes da embocadura a fim de corrigir suas respectivas afinações, além de dar algumas dicas para facilitar a execução de alguns trinados mais complicados.



Acima, a tabela de dedilhados para sustenidos e bemóis. Duas coisas são dignas de nota na tabela acima. A primeira e mais simples delas é a posição da clave de sol: ela está na segunda linha da pauta (sua posição mais usual na música para traverso barroco) e não na terceira (posição da música para a nossa flauta moderna). A segunda delas é o fato de que Hotteterre faz questão de dividir os sustenidos e bemóis: sustenidos na escala ascendente, bemóis na escala descendente. Apesar da divisão, o leitor poderá observar que os dedilhados para as notas sustenidas e seus respectivos bemóis são idênticos. Naquela época, porém, o sistema de afinação por temperamento igual ainda não era a norma, de forma que Hotteterre, através dessa divisão, demonstra que ele não pensava enarmonicamente, não adotando a afinação por temperamento igual.




Acima, a tabela de dedilhados para trinados. Há também algo de interessante a ser notado aqui. Aquilo que hoje conhecemos como trinados recebia nomes diferentes naquela época: tremblement (“tremor”) e cadence, (“cadência”, mesmo). Este último termo levanta suposições interessantes acerca de seu emprego. A mais comumente aceita é o fato de que tal tipo de embelezamento ou adorno musical tinha presença quase obrigatória em momentos cadenciais da música. As "cadences" eram assinaladas na partitura por meio de uma pequena cruz acima da nota onde deveriam ser executadas, conforme é possível ver na tabela acima.



Um exemplo sobre como interpretar a tabela acima:

---Cadences sur le ré (“trinados sobre a nota ré”)---

Observe que há quatro tipos de trinados possíveis feitos sobre a nota ré: dois sobre o ré natural e dois sobre o ré sustenido. Como era de praxe na época, os trinados sempre começam pela nota superior, de forma que há, para o ré natural, um trinado que começa do mi natural e um que começa do mi bemol; para o ré sustenido, um trinado que começa do mi natural e outro que começa do mi sustenido. Isso totaliza os quatro trinados possíveis sobre a nota ré, demonstrados na tabela.



Observe o primeiro deles, começando com o mi natural e repousando em ré natural. O primeiro dedilhado mostra em qual posição se deve atacar o mi natural, ou seja, em qual posição se deve começar o trinado. O segundo dedilhado mostra duas coisas: em qual posição se deve terminar o trinado e qual (ou quais) dos dedos deve(m) trinar – ou, em outras palavras, qual (ou quais!) dos orifícios da flauta deve(m) ser aberto(s) e fechado(s) alternadamente, a fim de gerar o efeito do trinado. Tal (ou tais) orifício(s) é (são) indicado(s) por meio de uma “ligadura” presente na tabela de dedilhados e um rabisco que cruza o desenho do(s) orifício(s).



Assim sendo, o trinado de ré natural, começando com o mi natural, é feito atacando primeiro a nota mi em sua posição original e, em seguida, levantando e abaixando alternadamente o dedo do sexto orifício da flauta (o anelar da mão direita), até que o trinado pare na posição de ré natural. Já o trinado de ré sustenido, começando também o mi natural, começa também atacando o mi na posição original; mas, logo em seguida, o sétimo orifício deve ser aberto (através da ação da chave do dedo mínimo da mão direita) e dedo do sexto orifício deve trinar (novamente, o anelar da mão direita).



* * *



Antes de terminar esta postagem que trata dos seis primeiros capítulos do tratado de flauta transversal de Jacques-Martin Hotteterre, é muito importante frisar algo sobre as tabelas de dedilhados e trinados. Elas não representam, de maneira alguma, um sistema padrão para traversos barrocos. Muito embora vários desses dedilhados funcionem bem em traversos de fabricantes diferentes e de fases diferentes do período barroco, eles foram pensados de forma mais específica para o tipo de flauta construída pelos Hotteterre. A verdade é que não há regras absolutas naquilo que diz respeito aos dedilhados. O traversista deve conhecer os dedilhados mais comumente utilizados, mas, ao mesmo tempo, deve experimentar alternativas. Cada traverso, mesmo que tenha sido fabricado pelo mesmo luthier, tem suas particularidades de afinação e de timbre; portanto, alguns dos dedilhados empregados mais corriqueiramente podem não ter um efeito tão bom quanto dedilhados alternativos descobertos através da experimentação do traversista. Não se espante com isso: até mesmo ao tocar determinadas passagens com nossas flautas de sistema Böhm nos vemos forçados a buscar por dedilhados que fogem daquilo que é considerado como padrão – seja para proporcionar mais agilidade ao movimento dos dedos, para corrigir problemas de afinação ou então para provocar mudanças de cor de som. Dedilhados alternativos não devem ser tratados como tabu! A história da flauta nos demonstra que eles foram e continuam sendo muito bem vindos em nossa performance.


Principais fontes:
HOTTETERRE, Jacques-Martin. Principes de la flute traversiere, ou flute d'allemagne. De la flute a bec, ou flute douce, et du haut-bois, divisez par Traitez. Paris: C. Ballard, 1707. Fac-simile presente em: Fac-símile presente em: SAINT-ARROMAN, Jean. Méthodes & Traités: Flûte Traversière - France 1600-1800. Vol.I. p.17-31. 3ªEd. Bressuire: Anne Fuzeau Productions, 2001.
POWELL, Ardal. The Flute. New Heaven and London: Yale University Press, 2002.
SOLUM, John. The early flute . Oxford: Oxford University Press, 1992. 

terça-feira, 12 de março de 2013

Marin Mersenne: Harmonie Universelle (1636) - The transverse flute and the recorder

Marin Marsenne (1555-1648) was a French born theologist, priest, philosopher, mathematician and musical theorist. He played an important role in the dissemination of the scientific and philosophical production of his time: he maintained correspondence with Descartes, Galileo, Pascal, and Torricelli (among others). His main contribution to music was a treatise titled "Harmonie Universelle" (1636), which deals with many theoretical and practical aspects of seventeenth-century music - just like a great musical encyclopedia. In this post, I will relate to the definitions of "transverse flute" and "recorder" given by the author.



Transverse flute ("Fluste d'Allemand")

The entry which deals with the transverse flute is titled "Fluste d'Allemand" (if you recall it, the transverse flute was known at that time and in the majority of European countries as "german flute" - if not, go to the post related to the flute in the Middle Ages). Mersenne gives its measures and writes about its basic technical principles: how to hold the flute and how to blow inside of it. He also provides a fingering chart for it.

But even before talking about the transverse flute, Mersenne's concern is to make it clear that the fluste d'Allemand is a completely different instrument from the "Flageollet" (written in some publications with a single "L" instead of a double one). The French version of the flageollet is very similar to the recorder: 

This is an English flageolet. Its sound is very similar to that of an Irish tin whistle. 

On the video posted above, we can hear and see a "double flageolet". Its shape resembles more closely that of an English flageolet. Its sound is somewhere between that of a recorder and an Irish tin whistle.

The precedent image can be found in Mersenne's treatise. The letters and numbers contained in it are there to help the reader to understand what Mersenne wrote: "Even if some people prefer to put this kind of flute in the same category of the Flageollet because they both have six holes to be stopped with the fingers, I chose not to do the same because the embouchure hole is not located in the A B region (as it can be observed in the flutes of the other kind), but in the I hole (...). The embouchure is achieved by placing the inferior lip by the border of that hole and pushing the air rather softly into it.". The author sustains that the embouchure needed to play the transverse flute is more difficult to learn than the embouchure needed to play the flageolet and other similar flutes.

Mersenne also talks about which materials could be used to make transverse flutes. Wood was more commonly employed, especially that of the plum and cherry trees. Ebony was also appreciated. Besides wood, glass and crystal could be used, even though more rarely. Still on the subject of the physical characteristics of the flute, Mersenne provides us with measurements for the holes' diameters, for the distance between them, and for the tube's diameter. But Ardal Powell (The Flute, 2002), sustains that some of those measurements are not accurate. The flute described by Mersenne is, supposedly, a flute in G, but the provided fingering chart seems to relate to a flute in D - and the given distance between each of the finger-holes doesn't seem to correspond with neither instrument. The same fingering chart could be used, according to its author, by those who play the fife ("Fifre"). Mersenne writes that the fifre and the transverse flute are two very similar instruments, differing only in sonority (the tone of the fifre being more piercing and lively) but not in technique.


Recorder ("Fluste d'Angleterre")

The entry which deals with the recorder is called “Fluste d’Angleterre” (“english flute"), also known as “Fluste douce” (“sweet flute”) and nine-hole flute. Its first name is due to the fact that it was first introduced in French territory by an unknown English king. Its second name was inspired by its sweet tone. The origin of its third name is rather obvious: that flute had, indeed, nine finger-holes. Today, this kind of flute is known as “flûte à bec” (“flute with a beak”) by the French.


The flute described by Mersenne could be played by right and left-handed musicians: the last finger-hole (the one located at the end of the flute’s foot joint) was doubled, making it possible for both kinds of flutists to reach it. Mersenne affirms that the recorder and the “Flageollet” had the same extension (a 15th, approximately).


This image can be found in Mersenne’s “Harmonie”. Its shows many musical instruments, most of them recorders. The letters written on the image are meant to help the reader to have a better understanding of which instrument was Mersenne talking about. The instrument pointed by a green arrow is a recorder in its more familiar shape. The blue arrows show a less known kind of recorder. According to the author, that instrument could be 7 or 8 feet long. The blue oval shows a kind of resonating chamber which hides some of the toneholes from our view. Those toneholes are stopped by the action of a key for the small finger. That key is doubled, a feature that allows right and left-handed flutists to play the instrument. Watch the following video to see and to hear this overgrown flute.

This entry mentions a very curious technique. Mersenne points out rather naturally that the natural extension of the recorder can be expanded if the flutists sings and plays at the same time, “for the wind which leaves the mouth while one sings is capable of sounding the flute, making it possible for a single man to play a Duo”. It is interesting to notice that such technique was not mentioned in the entry which deals with the transverse flute. The author mentions solely the possibility to build transverse flutes with two tubes, an invention that would allow a flutist to play a duet without the help of another musician. Maybe Mersenne hadn't met a flutist capable of applying the sing-while-playing technique to the transverse flute with equal success as it was applied to the recorder. It can be inferred that Mersenne thought that such technique could disturb the kind of embouchure needed to play the transverse flute and, therefore, it couldn't be used. Nevertheless, it is worthy of notice that in 1636 a technique that still sounds rather strange to some 21th century listeners was not a stranger to Mersenne and his contemporaries.

Principais fontes:
MERSENNE, Marin. Harmonie Universelle. Paris: 1636. Fac-símile presente em: SAINT-ARROMAN, Jean. Méthodes & Traités: Flûte à Bec - Europe 1500-1800. Vol.I. p.165-168. 3ªEd. Bressuire: Anne Fuzeau Productions, 2001.
MERSENNE, Marin. Harmonie Universelle. Paris: 1636. Fac-símile presente em: SAINT-ARROMAN, Jean. Méthodes & Traités: Flûte Traversière - France 1600-1800. Vol.I. p.7-10. 3ªEd. Bressuire: Anne Fuzeau Productions, 2001.
POWELL, Ardal. The Flute. New Heaven and London: Yale University Press, 2002.