domingo, 12 de agosto de 2012

Marin Mersenne: Harmonie Universelle (1636) - A flauta transversal e a flauta doce

Marin Mersenne (1555-1648) foi um teólogo, padre, filósofo, matemático e teórico musical nascido na França. Foi uma figura importante para a divulgação da produção científica e filosófica de sua época, uma vez que ele mantinha correspondência com vários pensadores importantes daquele tempo, dentre eles Descartes, Galileu, Pascal e Torricelli. No campo da música, sua maior contribuição foi o tratado intitulado "Harmonie Universelle". Publicado no ano de 1636, o "Harmonie" trata sobre vários aspectos práticos e teóricos da música do século XVII, funcionando como uma grande enciclopédia voltada para o assunto. Nesta postagem, tratarei dos verbetes relacionados à flauta transversal e à flauta doce contidos na obra em questão.


Flauta transversal ("Fluste d'Allemand")

O verbete que fala sobre a flauta transversal declara ter como propósito fornecer informações sobre a "Fluste d'Allemand" (se o leitor se recorda bem, a flauta transversal daquela época era conhecida na maioria dos países europeus como "flauta alemã" - ver postagem sobre a flauta na Idade Média). Mersenne escreve sobre as medidas da flauta, além de falar sobre seus princípios básicos de funcionamento: como segurá-la e como conduzir o ar para dentro dela, trazendo também uma tablatura de dedilhados para a produção das notas.

Antes mesmo de começar a falar sobre a flauta transversa, o autor se preocupa em deixar claro que esse tipo de flauta é diferente de um instrumento conhecido como "Flageollet" (em algumas publicações grafado com apenas um "L" no lugar dos dois "L's"), cuja versão francesa, por sua vez, é bastante semelhante à flauta doce:
Esse é um flageolet inglês. Seu som é bem próximo àquele de um tin whistle irlandês.

No vídeo acima, uma demonstração de um "flageolet duplo", o qual se assemelha mais ao modelo inglês de flageolet. Note que o som parece estar entre o som da flauta doce e do tin whistle irlandês (ver postagem sobre os diversos tipos de flauta).


A imagem acima pertence à publicação de Mersenne. As letras e números nela contidos servem para orientar o leitor: "Mesmo que algumas pessoas costumem colocar esse tipo de flauta na categoria do Flageollet por conta deste ter, assim como ela, seis orifícios a serem tapados, preferi colocá-la à parte pelo fato de que a embocadura não se encontra na região A B como acontece nas demais, mas sim no orifício I (...). A embocadura é feita colocando o lábio inferior na borda do primeiro orifício e empurrando o ar bem suavemente para dentro dele.". O autor defende que a embocadura da flauta transversal é bem mais difícil de ser aprendida do que a embocadura das flautas semelhantes ao flageolet. 

Mersenne fala um pouco sobre quais materiais poderiam ser utilizados para fabricar flautas transversais. O material mais usual era a madeira, variando, preferencialmente, entre a do pé de ameixa e da cerejeira. O ébano também poderia ser utilizado. Além da madeira, poderiam ser usados o cristal e o vidro, mas exemplos de flautas nesses materiais são bem mais raros. Ainda falando sobre aspectos físicos da flauta, ele fornece uma série de medidas para os diâmetros dos orifícios, para as distâncias entre eles e para o diâmetro de seu tubo. Ardal Powell, em seu "The Flute", porém, argumenta que há algumas falhas nas medidas dadas: Mersenne fala de uma flauta supostamente afinada em sol, mas a extensão dada pela tablatura de dedilhados parece remeter a uma flauta em ré, enquanto que a distância dada para o espaço entre os orifícios da flauta não corresponde a nenhum dos dois instrumentos. A propósito, a tablatura de dedilhados presente no verbete serve também àquele que toca pífano ("Fifre"). Segundo o autor, ele e a flauta transversal são dois instrumentos extremamente semelhantes, diferindo apenas em sonoridade (a sonoridade do pífano sendo mais estridente e viva) e não em técnica.

Flauta doce ("Fluste d'Angleterre")

O verbete que fala sobre a flauta doce tem como proposta informar o leitor sobre a "Fluste d'Angleterre" (flauta da Inglaterra), também conhecida como "Fluste douce" (flauta doce) e flauta de nove orifícios. Ficou conhecida pelo primeiro nome por ter sido enviada à França por um rei inglês cujo nome não é citado no verbete; pelo segundo nome por conta da doçura de seu som; pelo terceiro nome pelo fato de possuir nove orifícios. Atualmente, é também conhecida entre os franceses como "flûte à bec" (flauta de bico).

A flauta descrita por Mersenne poderia ser tocada tando por destros tanto por canhotos, uma vez que o orifício mais próximo do pé da flauta era dobrado (um furado mais à direita, outro furado mais a esquerda, mas ambos na mesma altura e com o mesmo diâmetro), a fim de que os dedos mínimos das mãos de ambos os tipos de flautistas pudessem alcançá-los. Além disso, ele afirma que a extensão da flauta doce é a mesma extensão do "Flageollet". Conforme a tablatura mostrada por ele, a extensão aproximada seria equivalente a uma décima quinta.
A imagem acima está presente no verbete. Ela mostra vários instrumentos musicais, a maioria deles flautas doces. As letras presentes na imagem servem para que o leitor se localize ao procurar nela as partes dos instrumentos às quais Mersenne faz menção. O instrumento apontado pela seta verde é a flauta doce em sua forma mais conhecida. As setas azuis mostram uma flauta doce menos conhecida. Segundo o autor, tal flauta poderia medir de 7 a 8 pés de comprimento (algo entre dois metros e dois metros e meio!). A elipse azul mostra a peça central da flauta e o orifício escondido por ela, o qual é tapado através da ação de chaves. Em flautas menores, tal orifício é dobrado (conforme descrito um pouco mais acima nesta postagem). Aqui, porém, as chaves que tapam esse orifício são colocadas em ambos os lados da flauta. No vídeo abaixo você poderá ver melhor como funciona e como soa esse instrumento. Para ver outros tipos de flauta doce, visite a postagem referente aos diversos tipos de flauta, presente neste mesmo blog.

Esse verbete traz algumas linhas muito curiosas sobre uma técnica cujo emprego só se faz, atualmente, em música contemporânea e popular. Mersenne comenta com muita naturalidade que a extensão da flauta doce pode ser expandida se o flautista tocar e cantar ao mesmo tempo, "pois o vento que sai da boca enquanto se canta é capaz de fazer a flauta soar, de forma que um homem sozinho pode fazer um Duo". É interessante o fato de que, no verbete voltado para a flauta transversal, tal técnica não foi mencionada. O autor fala apenas sobre a possibilidade da construção de instrumentos dotados de dois tubos, invenções que capacitariam o instrumentista a fazer um duo sem precisar de outro músico para acompanhá-lo. Talvez o autor não tivesse visto em sua relativamente longa vida alguém que fosse capaz de aplicar tal técnica à flauta transversal com a mesma eficiência aplicada à flauta doce, levando-o a crer que o canto interferiria de forma drástica na embocadura necessária para tocar o tipo mencionado de flauta. Não obstante, é realmente notável que, em 1636, alguém já havia escrito sobre algo cuja entrada no repertório técnico flautístico se deu numa época relativamente recente!

Principais fontes:
MERSENNE, Marin. Harmonie Universelle. Paris: 1636. Fac-símile presente em: SAINT-ARROMAN, Jean. Méthodes & Traités: Flûte à Bec - Europe 1500-1800. Vol.I. p.165-168. 3ªEd. Bressuire: Anne Fuzeau Productions, 2001.
MERSENNE, Marin. Harmonie Universelle. Paris: 1636. Fac-símile presente em: SAINT-ARROMAN, Jean. Méthodes & Traités: Flûte Traversière - France 1600-1800. Vol.I. p.7-10. 3ªEd. Bressuire: Anne Fuzeau Productions, 2001.
POWELL, Ardal. The Flute. New Heaven and London: Yale University Press, 2002.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

The history of the transverse flute: The Baroque Era (part one)


In Music History, the Baroque Era lies between the years 1600 and 1750. Throughout the Renaissance, the transverse flute was used in two important contexts: in military music and in consort music (check the post on the renaissance flute to review this subject). By the end of the 16th century, things started to change in music making. Consorts that consisted of instruments of the same kind lost some of their popularity to consorts of mixed instruments: violas, fiddles, recorders, flutes, cornetts, as well as the harpsichord, the lute and the theorbo.

The preference for this new kind of music will be, in Italy, the origin of a new musical form: the sonata for soloist. The sonata consisted of a musical composition in which one instrument was treated like the soloist, receiving most of the attention of the composer and the audience. The soloist could be accompanied by one or two instruments - a low-register instrument like the viola da gamba or the basson, playing the bass notes, and a harmony instrument such as the harpsichord or the theorbo. This new musical form brought new musical exigences to the instrumentalists. To fulfill those new demands, they had not only to rethink their instrumental techniques, but they also had to find other ways to make their instruments.
Paulo da Mata (playing the traverso) and Guilherme de Camargo (playing the theorbo) playing a piece by Michel Blavet, a French composer of the 18th century. This video is a good example of the new role of the flute during the Baroque Era, even though it is a late example if we consider that this kind of music started to be played in Italy by the end of the 16th century.

The court of Louis XIV, the Sun King, was very favorable to the development of this new kind of music and other more elaborated instrumental forms. While the music employed in solemnities and official royal events was rigidly taken care of by Jean-Baptiste Lully, the music played in private parties had a more inventive character. Talented instrumentalists were invited to such occasions and the preferred instruments were, at that time, the theorbo, the harpsichord, the viola da gamba and the flute. This kind of music provoked another great change: instrumentalists that used to play two or more instruments professionally started to specialize in one instrument, aiming to achieve a high degree of virtuosity on the chosen instrument. 

The transverse flute of the Baroque Era (known simply as traverso) acquired a more or less definite form around the year 1670. Some differences are noticeable when comparing a traverso and a renaissance flute: the traverso was divided in more pieces (the renaissance flute was divided in two pieces or wasn't divided at all, while the baroque flute could be divided intro three or even four pieces); the bore changes from cylindrical to conical; a new tone hole is added and it remains closed by a key that, when pressed by the little finger of the right hand, opens the hole.

The Hotteterre family became famous as an important family of wind instrument makers. The most famous among the Hotteterres is Jacques-Martin Hotteterre (1674-1763), nicknamed "le Romain". His fame - both while alive and posthumous - is due to his treatise "Principes de la Flute Traversiere" (1707). His treatise has directions on how to play the traverso, the recorder and the oboe. However, the thought that he was the one who 'invented' the baroque flute is not accurate. Some researchers point out that the key on the foot of the flute might have been invented around the year 1670, four years before Jacques-Martin was born.
A flute maker from Japan talks (in Japanese) about his replica of a Hotteterre traverso found in Graz. Even being unable to understand Japanese, that's a very interesting video: the craftsman shows to the camera all the pieces of the traverso in different angles.


The Hotteterre flute found in Graz may have been made by Jacques-Martin or his father Martin. That flute is considered the best example of the early French baroque flute. This was probably the instrument that Lully had in mind when he wrote what researchers consider to be the first apparition of the transverse flute in an orchestra: his opera-ballet "Le Triomphe de l'Amour", from 1681. Instruments thought to be made by the Hotteterres were also found in Berlin and Saint Petersburg, but it was found out recently that they are replicas made in the 19th century. Those last two are pitched in A=400hz, while the flute found in Graz is in A=392hz. All the three flutes have a rich and smooth tone.
 The sound of a Hotteterre flute. This piece was written by Michel de Labarre (1675-1745).

A few paragraphs ago, I wrote that the baroque flute could be divided in three or four pieces, contrasting to the one-pieced (or, sometimes, two-pieced) renaissance flute. This division is due not only to the ease to carry a disassembled instrument, but also to tuning issues. The pitch adopted in a determined city could be different from the pitch adopted in other cities. One way to make tuning easier was to make flutes in four parts and to provide the flutists with upper-bodies of different lengths: the bigger the upper-body is, the lower is the tuning. Those extra upper-bodies were known as "corps de rechange" (something like "exchangeable bodies"). 
A four-piece flute by Carl August Grenser (1720-1807), with six "corps de rechange". The foot of that flute also has a tuning mechanism: when pulled out, it makes the foot longer and, therefore, lowers the tuning.

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Now that this little historical contextualization was made, it is time to start writing about the flute publications that I have in my personal library. We have stopped at the time when the one-keyed flute was invented - then, the following posts will deal with the methods and treatises written until that point in history. When I'm done with this, I'll continue our little historical contextualization (The Baroque Era - Part II).  Some of the publications that I plan to discuss  at the moment are the treatises written by Hotteterre, Quantz and Tromlitz, among many other methods and writings.

POWELL, Ardal. The Flute. New Heaven and London: Yale University Press, 2002.
SOLUM, John. The early flute. Oxford: Oxford University Press, 1992.

domingo, 10 de junho de 2012

História da flauta transversal: O Barroco (parte I)

Na história da música, o período barroco está compreendido entre os anos 1600 e 1750. Ao longo da Renascença, as flautas transversais eram usadas em dois contextos principais: a música militar e a música de consorte (rever a postagem sobre a flauta no período renascentista para relembrar o assunto). Ao final do século XVI, algumas mudanças começaram a ocorrer no fazer musical. Os consortes de instrumentos do mesmo tipo perderam um pouco de popularidade, cedendo mais espaço para os agrupamentos instrumentais mistos: violas, violinos, flautas doces, flautas transversais, cornetas, trombones, instrumentos de teclado como a espineta e o cravo e instrumentos de cordas de dedilhadas como o alaúde e a teorba.

A preferência por esse novo tipo de música será, na Itália, o gérmen do surgimento de uma forma musical que, grosso modo, é utilizada ainda nos dias de hoje: a sonata para solista. Uma sonata para solista daquela época consistia em uma composição na qual a maior parte da atenção está voltada para um instrumento principal, o qual poderia ser acompanhado por um ou dois instrumentos responsáveis por fazer a base da música – um instrumento grave como a viola da gamba ou o fagote para fazer o baixo e um instrumento como o cravo, a espineta ou a teorba para fazer as harmonias. O amplo uso dessa nova forma de composição musical será responsável por trazer novas exigências aos instrumentistas, os quais, além de precisarem reavaliar suas respectivas técnicas, também precisarão repensar a construção de seus instrumentos.
Paulo da Mata (no traverso) e Guilherme de Camargo (na teorba) interpretam uma peça escrita por Michel Blavet, um compositor francês do século XVIII. É um bom exemplo do novo papel da flauta no período barroco, embora seja um exemplo tardio em relação ao aparecimento da sonata solista na Itália, no final do século XVI.

O ambiente da corte de Louis XIV, o Rei Sol, foi bastante propício para o desenvolvimento dessa e de outras formas musicais instrumentais mais elaboradas. Enquanto que a música de eventos solenes e oficiais seguia padrões rígidos – os quais eram observados de perto pelo diretor musical da corte, Jean-Baptiste Lully (1632-1687) –, a música de festas privadas tinham um caráter mais livre e virtuoso. Instrumentistas de especial talento eram convidados para tais ocasiões e os instrumentos preferidos eram, naquela época, a teorba, o cravo, a viola da gamba e a flauta transversal. Esse novo tipo de fazer musical proporcionou outra grande mudança na profissão dos músicos: instrumentistas que, outrora, tocavam dois ou mais instrumentos, passaram a especializar-se em apenas um, a fim de atingir um grau de excelência no tocar do instrumento eleito, possibilitando-lhes executar peças de maior virtuosismo.

A flauta transversal do período barroco (conhecida como traverso barroco) adquiriu uma forma mais ou menos estabelecida por volta do ano de 1670. Algumas diferenças em relação à flauta renascentistas são notáveis: a flauta começa a ser dividida em mais partes desmontáveis (as flautas renascentistas eram, geralmente, peças unas ou, em raras ocasiões, divididas em duas peças, enquanto que a flauta barroca poderia ser dividida em três ou quatro peças); o tubo deixa de ser cilíndrico e passa a ser cônico, ou seja, seu diâmetro torna-se cada vez mais estreito ao longo do instrumento, atingindo seu maior diâmetro na extremidade da cabeça da flauta e chegando ao menor diâmetro na extremidade do pé da flauta; um orifício é acrescentado, o qual permanece fechado por uma chave que, quando acionada (via de regra pelo dedo mínimo da mão direita do flautista), o abre.

A família Hotteterre entrou para a história da música como um importantíssimo clã de fabricantes de instrumentos de sopro, tais como oboés e fagotes (além de flautas, claro). O mais famoso dentre os membros da família é Jacques-Martin Hotteterre (1674-1763), apelidado de "le Romain". Sua fama – tanto em vida quanto póstuma – deve-se enormemente ao seu tratado "Principes de la Flute Traversiere" (1707), o qual trata não apenas da flauta transversal, como também da flauta doce e do oboé (escreverei sobre essa publicação em uma postagem individual, futuramente). No entanto, não é bem fundamentada a atribuição que lhe dão como o inventor da flauta barroca. Indícios apontam que a chave para o dedo mínimo fora inventada por volta do ano de 1670. Como poderia ele tê-la inventado quatro anos antes de ter nascido? Também foram levantadas outras hipóteses para a invenção da flauta barroca, todas envolvendo outros membros da família Hotteterre, todas elas igualmente desprovidas de fundamentação sólida.
No vídeo acima, um luthier japonês fala (em japonês) sobre sua réplica de um traverso Hotteterre encontrado em Graz. Mesmo não compreendendo uma palavra, é um vídeo interessante: ele mostra cada uma das peças do traverso, em vários ângulos.


A flauta Hotteterre encontrada em Graz pode ter sido construída por Jacques-Martin ou por seu pai, Martin. Tal flauta é considerada o melhor exemplo do estágio inicial da flauta barroca francesa. Foi para esse tipo de flautas, muito provavelmente, que Lully escreveu música para aquilo que se considera a primeira aparição de flautas transversais dentro de uma orquestra: sua ópera-balé "Le Triomphe de l’Amour", de 1681. Também foram encontrados instrumentos classificados, inicialmente, como flautas Hotteterre em Berlim e em São Petersburgo, mas descobriu-se recentemente que tratavam-se de réplicas feitas no século XIX. Estas duas últimas flautas têm o lá em 400hz, enquanto que aquela encontrada em Graz tem o lá em 392hz. Os três instrumentos são dotados de sonoridade bastante rica e suave.
 O som de uma flauta Hotteterre, através de uma peça para duas flautas escrita por Michel de Labarre (1675-1745).

Há alguns parágrafos, escrevi que a flauta do período barroco passou a ser construída em três ou quatro peças desmontáveis, em oposição com a construção predominantemente una da flauta renascentista. Essa divisão não se deve exclusivamente à praticidade que ela ocasionava na hora de guardar o instrumento e carregá-lo consigo. Como dito em postagens anteriores, a altura do lá variava muito de cidade para cidade – e, muitas vezes, dentro de uma mesma cidade, de igreja para igreja. Com tantas afinações diferentes, não era nada viável que um flautista possuísse várias flautas, cada uma com uma afinação própria. Alguns luthiers, então, passaram a construir flautas em quatro partes: a cabeça ou bocal (local onde fica localizado o orifício onde se sopra); o corpo superior (local onde ficam os orifícios superiores, mais próximos do orifício do bocal); o corpo inferior (local onde ficam os orifícios inferiores, mais próximos da extremidade final da flauta); e, por fim, o pé (a ponta da flauta, onde fica localizada a chave que abre o sétimo e último orifício). A flauta em quatro partes poderia ser acompanhada de vários corpos superiores, cada um com um comprimento diferente. Dessa maneira, o flautista poderia, na hora de montar sua flauta, escolher qual dos corpos superiores utilizar, alcançando a afinação apropriada para o local onde ele iria tocar: quanto maior o corpo superior escolhido, mais baixa a afinação; quanto menor, mais alta. Esses corpos superiores extras eram chamados de "corps de rechange" (algo como "corpos de troca"). 
Flauta feita por Carl August Grenser (1720-1807), em quatro peças. O luthier fez seis corpos superiores de tamanhos diferentes. Além dos "corps de rechange", a flauta conta também com um mecanismo bem particular, localizado no pé: trata-se de uma peça retrátil, a qual, na foto acima, está em sua máxima extensão. Quanto mais para fora a peça retrátil estiver, mais baixa será a afinação; quanto mais para dentro, mais alta.

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Tendo feita essa pequena contextualização histórica acerca da história da flauta transversal desde a Idade Média até meados do Barroco, é chegada a hora de começar a falar de forma mais direta sobre o material do qual disponho. Decidi parar neste ponto da história da flauta (no ponto do estabelecimento do traverso barroco como o instrumento descrito nesta postagem, ou seja, a flauta de tubo cônico, sete orifícios e uma chave) a fim de, agora, falar sobre o material relacionado a esse tipo de flauta. Ao longo do período barroco e no início do período clássico, a flauta vai sofrer ainda muitas modificações, especialmente naquilo que trata do surgimento de novas chaves e mecanismos. Quando for o momento de falar sobre esses outros tipos de flauta, sigo com a contextualização histórica – começando pela segunda parte desta postagem, portanto. O material voltado para o traverso barroco de uma chave é vasto e de peso: o supracitado tratado de Jacques-Martin Hotteterre, o detalhadíssimo tratado de Johann Joachim Quantz e o igualmente minucioso primeiro tratado de Johann George Tromlitz, além de vários métodos interessantes de autores menos conhecidos e publicações avulsas igualmente esclarecedoras.

Postagens relacionadas:

Principais fontes:
POWELL, Ardal. The Flute. New Heaven and London: Yale University Press, 2002.
SOLUM, John. The early flute. Oxford: Oxford University Press, 1992.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

The history of the transverse flute - The Renaissance

The visitor probably remembers the fact that there are no extant transverse flutes from the Middle Ages, a fact that leaves us unable to know how they sounded and how they were played. Besides that, just few examples of music written at that time for the flute were found - which leaves us in the dark when we try to figure out the characteristics of the flute repertoire back then. The Renaissance doesn't present such problems with the same depth: Renaissance flutes and Renaissance flute repertoire were both found and are being analysed by musicologists. Those sources, however, are not the only useful ones, for images and texts referring to the flute (the main kind of source we rely on when it comes to the Middle Ages) were also found.
 
Most historians agree that the Renaissance lies between the fifteenth and the seventeenth centuries. Anne Smith (the author of the chapter dedicated to the Renaissance flute which belongs to John Solum's book "The Early Flute"), however, defines the Renaissance flute as the flute played in Europe between 1500 and 1670, being the last date an estimated year for the appearance of the baroque traverso. Smith describes the Renaissance flute as having a more or less cylindrical bore, six finger-holes and one embouchure hole. 

Only rarely is the flute found in fifteenth-century paintings. The instrument is found more frequently in paintings of the next century. Those paintings suggest that the flute was played in two very different contexts, the military context being one of those two. Sources point out that the transverse flute became a traditionally military instrument around the sixteenth century. In 1467, Swiss troops achieved success in the battlefield by employing an extremely disciplined formation that was not only strong in defense but also movable when attacking. Testimonies related that those troops marched in perfect synchronicity, just like a deadly corps de ballet, accompanied by a fife (a transverse flute very similar to that one described by Annie Smith) and some drums. News about that original battle strategy spread all over Europe by the end of the fifteenth century.
This image belongs to a German manual of military science and law published in 1555. In it, we see a fife player (his back turned on us) and a drummer. Hanging on the fife player's back, his case, inside of which four instruments could fit: a long fife, two middle-sized fifes and another shorter in size.

Illustrations of battle situations dating from the sixteenth century do not represent the fife very uniformly: its size was highly variable (from 2 to 3 feet) and the number of finger-holes could vary from seven to eight. Thoinot Arbeau (1519-1595) wrote in his dance manual titled "Orchesographie" (1589) about a fife which characteristics are closer to those of the fife of our days: a little transverse flute with six finger-holes and a very narrow bore, which contributed to the brilliant timbre of the instrument. Arbeau also points out that the music played by military fife players was improvised.

A richly illustrated edition of the first known treatise on instrumentation was printed in Basel in 1511. Its title is "Musica getutscht" and it was written by Sebastian Virdung (c.1465-1511), a priest. Virdung was the first musical theorist of the seventeenth century to mention flutes of any kind. He uses the word "Flöten" to refer to recorders, and the word "Zwerchpfeiff" to refer to the military fife (he doesn't mention any kind of transverse flue played outside the military context). On the other hand, Martin Agricola (c.1486-1556) published in Wittenberg in 1529 (and also in 1545, in a revised edition), his "Musica instrumentalis deudch". Agricola writes about a few kinds of transverse flutes - the "Schweitzerpfeiffen" (Swiss fifes) and the "Querfeiffen" or "Querpfeiffen" (transverse flutes or transverse fifes) -, but he describes another kind of context for the use of those flutes, one very different from the military context.
 
The image above belongs to Virdung's "Musica getutscht". The fourth instrument from the top to the bottom was mentioned in the previous paragraph: it's the "Zwerchpfeiff". Right below it, four instruments from the family of the recorders (or "Flöten", according to Virdung). The two instruments on the top are not flutes, but shawms ("Schalmey"), the predecessors of the oboe.

I have mentioned the existence of two different contexts for flute-playing just a few paragraphs back. I've written about the military context. The other one is the one described by Agricola's writings: the court and the private residences - the chamber music (or, to be more specific, consort music). Consort music was written for a formation of instruments that belonged to the same family. If we take a flute for example, a consort of flutes would be formed by flutes of the same kind, but of different sizes (in order to explore low and high pitches), and each one with its individual melodic line. 

Agricola had in mind a flute consort in which three instruments of different sizes figured: one bass flute, another one of intermediate size which could play the tenor or the alto part, and a smaller flute to play high pitches. Philibert Jambe de Fer (c.1515-1566) describes in his "L'Epitome musical" (published in Lyons in 1556) a four-flute consort in which instruments of two different sizes were combined: one bass flute and three smaller flutes of the same size - versatile instruments capable to play in different registers. The first collection of music written for this kind of four-flute consort was published in 1519. That fact shows that Jambe de Fer was  writing about a practice that was already common when it comes to music for flute consorts of that time. 
English Renaissance music played by a Renaissance flute consort. That consort (the Flötten Consort Stuttgart) is similar to the one described by Agricola. It has three instruments: one bass flute and two flutes of similar size (opposing to Agricola's description of a flute consort of three flutes of different sizes).

It seems that the transverse flute has reached great popularity - as well as a certain level of predominance - at the middle of the seventeenth century. Such hypothesis is sustained by the numbers found in inventories of the musical instruments that belonged to certain courts of that time. One inventory written in 1589 referred to the musical instruments possessed by the court of Baden-Württemberg (located in Stuttgart): 220 transverse flutes, 48 recorders, 113 cornetts and 39 viols. The transverse flute also became popular outside of the court. Members of the bourgeoisie and amateur musicians among the nobles of both sexes were playing it in Italy, France and Holland.

Despite the large number of transverse flutes found in court inventories all over Europe, playing music in flute consorts seemed to be considered some kind of French expertise in the sixteenth century. Frenchmen called for themselves the status of the best flautists in Europe - they also didn't really like the term "German flute". That wasn't mere vanity: French flautists held very important musical positions outside France, a fact that attests the high quality of their performance.

The flute wasn't limited to military music and flute-consort music. It also appears in groups of diverse instruments. Such groupings weren't uncommon in the context of religious and private music. In 1563, in the Bavarian court located in Munich, Orlando di Lasso (1532-1594) started to use string instruments in religious music and, after that, started to use all kinds of instruments and voices. 
This painting (painted in 1520, approximately) shows three women practicing chamber music, in a private context, in a group of diverse instruments: the lute, the flute and the voice. 

Filadelfio Puglisi, a researcher who has studied the Renaissance flute in depth, had access to a Renaissance flute collection found in Verona, Italy. After comparing those flutes he found out some common characteristics between them:

1.In most cases, the embouchure hole was oval and smaller than the embouchure hole of baroque flutes;
2.To make fingering easier, the six finger-holes were placed in two groups of three;
3.All the holes were aligned, a feature that allowed the flute to be held either to the right or to the left;
4.The bore was semi-cylindrical;
5.The walls of the instruments were relatively thin, a feature that contributed to their lightness;
6.The pitch of the Verona flutes varied a lot, but two great pitch groups were found out: one in A=435hz (the "Kammerton", employed in private and festive music) and the other one in A=410hz (the "Chorton", employed in religious music). The Chorton was a whole tone lower than the Kammerton and the group of flutes in A=410hz was bigger than the other group in A=435hz.
Some of the Renaissance flutes found in Verona.

Instrumentalists tried to cultivate a singing style while playing - in other words, they wanted to make their instruments produce sounds which qualities resembled those of the human voice. Agricola encouraged the use of vibrato and many sources point out that instrumentalists considered that vibrato (produced by the air column or the fingers) was an essential element of the sound and its expressiveness. Renaissance flautists also gave great importance to the articulation of the sounds. As in speech, a clear articulation was considered indispensable for a good performance. Jambe de Fer encourages his readers to articulate every single note - even the fastest ones - saying that "he who doesn't articulate every syllable while giving a speech sounds like he is drunk and, therefore, such attitude would produce a poor effect in music as well". Another important aspect of Renaissance music-making was "diminution" - or improvised ornamentation of a melodic line. The instrumentalist had to be capable of improvising on the given melody, making his musical discourse even more rich.  

Thanks to the fact that there are extant Renaissance flutes and Renaissance flute-music, we can paint a clearer portrait of the flute of that time - a much clearer portrait than the one of the Middle Ages. However, it would be unwise to think that the knowledge we have is solid enough to make exact assumptions about the subject. The extant instruments are very fragile and, due to this fragility, just a few researchers have access to it. That means that we don't have many different points of view on the subject and that only a small number of individuals were able to make reliable replicas of those instruments and, therefore, to learn how to play them accordingly to the stylistic conceptions of the Renaissance. Besides that, it is not that simple to come up with the accurate dates of the making of the extant instruments - some of them were reevaluated as seventeenth-century replicas. What we know about the Renaissance flute is based on the vision of a small number of specialists, people in which we chose to trust. 

Main sources:
POWELL, Ardal. The Flute. New Heaven and London: Yale University Press, 2002.
SOLUM, John. The Early Flute. Oxford: Oxford University Press, 1992. 

domingo, 13 de maio de 2012

História da flauta transversal - A Renascença

O leitor deve se lembrar bem do fato de que flautas transversais da Idade Média não chegaram até nós, de forma que não somos capazes de saber exatamente como elas eram feitas ou como soavam. Além disso, poucos exemplos de música escrita para flauta foram encontrados, o que também nos deixa em terreno arenoso quando tentamos levantar suposições acerca das características do repertório flautístico daquela época. A Renascença  (ou, se preferir, o Renascimento ou Renascentismo) nos apresenta menos problemas nesse sentido, uma vez que tanto flautas quanto coletâneas impressas de música para flauta do período histórico em questão foram encontradas e estão sendo estudadas por musicólogos. Esse material, entretanto, não descarta a utilidade do tipo de material do qual os estudiosos se valiam para estudar a flauta da Idade Média, ou seja, iconografia e referências textuais.

O período renascentista é limitado, consensualmente, pelos anos 1400 e 1600. Anne Smith (autora do capítulo referente à flauta renascentista presente no livro “The Early Flute”, de John Solum), entretanto, prefere considerar a flauta renascentista como o instrumento musical em uso na Europa entre 1500 e 1670, ano aproximado do advento do traverso barroco. Smith descreve a flauta da renascença como um instrumento de tubo mais ou menos cilíndrico, dotado de seis orifícios para os dedos e um para o sopro. 

A flauta é raramente encontrada em pinturas do século XV, começando a aparecer com mais frequência na arte do século XVI. Tais pinturas sugerem um uso da flauta em dois tipos distintos de ambientes, produzindo música igualmente distinta. Um deles era o ambiente militar. Relatos demonstram que a flauta transversal tornou-se um instrumento tradicional da cultura militar em meados do século XV. Em 1467, esquadrões suíços alcançaram famosas vitórias utilizando-se de uma rigidamente disciplinada formação de soldados que não apenas era impenetrável em defesa como também altamente móvel ao atacar. Testemunhas relataram que as tropas suíças marchavam em sincronia perfeita, quase como um mortífero corpo de ballet, ao som de um pífano (uma flauta transversal semelhante àquela descrita por Anne Smith) acompanhado pela marcação de uma bateria. Notícias sobre essa nova técnica de batalha terrestre se espalharam por toda a Europa no final do século XV.
Esta imagem pertence a um manual alemão de lei e ciência militar publicado em 1555. Ela mostra um tocador de pífano (de costas para nós) e um percussionista. Nas costas do tocador de pífano, vemos o estojo de seus instrumentos, dentro do qual cabiam quatro pífanos: um longo, dois de tamanho médio e um de tamanho menor.

Ilustrações de situações de batalha do século XV representam o pífano de maneira não muito uniforme: ele variava muito de tamanho (entre, aproximadamente, 60 e 90cm) e o número de orifícios para os dedos variava entre sete e oito. Thoinot Arbeau (1519-1595), em seu manual de dança intitulado "Orchesogarphie" (1589), descreve um tipo de pífano mais próximo da flauta transversal renascentista e do pífano ainda usado hoje em dia: uma pequena flauta transversal com seis buracos para os dedos, dotada de um tubo muito estreito, contribuindo para a produção de sons estridentes. Arbeau também dá indicações de que a música tocada pelos tocadores de pífano em ambiente militar era improvisada.

Uma rica edição ilustrada do primeiro tratado de instrumentação conhecido foi impressa em Basel no ano de 1511. Trata-se do "Musica getutscht", escrito pelo clérigo Sebastian Virdung (c.1465-1511). Virdung é o primeiro teórico de música do século XVI a mencionar qualquer tipo de flauta, usando o termo "Flöten" para se referir às flautas doces e "Zwerchpfeiff" para se referir ao pífano militar, não aludindo a flautas transversais fora do uso militar. Já Martin Agricola (c.1486-1556) publica em Wittenberg, no ano de 1529 (e também em 1545, em uma edição revisada), o seu "Musica instrumentalis deudch". Nele, Agricola se refere a alguns tipos de flauta transversal – "Schweitzerpfeiffen" (pífanos suíços) e "Querfeiffen" ou "Querpfeiffen" (flautas ou pífanos transversais) –, mas descreve para elas um uso que não está ligado à vida militar.
A imagem acima pertence ao "Musica getutscht", de Virdung. O quarto instrumento de cima para baixo é o "Zwerchpfeiff" mencionado no parágrafo anterior. Logo abaixo dele, quatro instrumentos da família da flauta doce, aos quais Virdung dá o nome de "Flöten". Os dois instrumentos localizados na parte mais alta da imagem não eram flautas, mas sim charamelas ("Schalmey"), instrumentos que precederam ao oboé.

Nesta mesma postagem, um pouco acima, disse que as pinturas do Renascimento demonstram o uso de flautas em dois ambientes distintos e citei, primeiramente, o ambiente militar. O outro  ambiente é aquele ao qual os escritos de Agricola fazem menção: o ambiente das cortes e das residências privadas, produzindo música de câmara – mais especificamente, música de consorte. Música de consorte era aquela escrita para uma formação instrumental que abrangia instrumentos da mesma família. No caso da flauta, era música escrita para um grupo flautas do mesmo tipo, mas cada uma com uma linha melódica própria e podendo variar em tamanho, a fim de explorar sons mais graves e mais agudos.

Para Agricola, o consorte de flautas transversais era composto por três instrumentos de tamanhos diferentes: uma flauta baixo, uma outra de tamanho intermediário que poderia fazer a parte do tenor ou do contralto, e uma flauta menor para fazer a parte mais aguda (o discanto, como era chamado na época). Já Philibert Jambe de Fer (c.1515-1566), em seu "L’Epitome musical" (publicado em Lyons em 1556), descreve um consorte de quatro flautas de duas dimensões diferentes. Tratava-se de uma flauta baixo e três flautas menores e de tamanhos iguais entre si, instrumentos cuja extensão permitia que cada um executasse funções diferentes dentro da música. A primeira coletânea de peças escritas para esse tipo de consorte a quatro partes data de 1519, o que indica que Jambe de Fer estava registrando em sua publicação de 1556 uma prática que já vinha acontecendo há algumas décadas.
Música renascentista inglesa executada com um consorte flautas renascentistas. A formação do grupo que toca nesse vídeo, o Flötten Consort Stuttgart, é semelhante àquela descrita por Agricola. O consorte contém três instrumentos: uma flauta baixo e duas flautas de tamanho semelhante (em oposição ao que escreve Agricola, que recomenda o uso de duas flautas menores que a flauta baixo, mas de tamanhos diferentes entre si).

A flauta transversal parece ter alcançado um alto nível de popularidade – e até mesmo de predominância – a partir da metade do século XVI. Tal hipótese é sustentada pelo grande número de flautas transversais listadas em inventários de cortes daquela época. Um inventário escrito em 1589 referente ao instrumentário da corte de Baden-Württemberg, em Stuttgart, informa que tal corte possuía nada mais, nada menos, que 220 flautas transversais, 48 flautas doces, 113 cornetas e 39 violas. Ao mesmo tempo em que a flauta ficou popular nas cortes, ela também atingia popularidade entre burgueses e nobres músicos amadores de ambos os sexos na Itália, na França e na Holanda.

Apesar da presença de tantas flautas transversais em várias cortes europeias, o hábito de fazer música com consortes de flautas parecia ser ainda considerado como algo tipicamente francês em meados do século XVI. Os franceses, inclusive, reivindicavam para si o status de melhores flautistas da Europa – eles pareciam não ser muito favoráveis ao nome dado à flauta daquela época (“flauta alemã”). Tal reivindicação não parecia ser pura vaidade: o fato é que flautistas franceses ocupavam posições musicais importantes até mesmo fora da França, o que pode ser interpretado como um atestado do nível de qualidade de execução da flauta alcançado pelos franceses.

A flauta não estava limitada à música militar e à música de consortes de flautas. Há também indicações de seu uso em agrupamentos instrumentais mistos. Tais agrupamentos não eram incomuns dentro do contexto das músicas religiosa e doméstica. Em 1563, na corte Bávara situada em Munique, Orlando di Lasso (1532-1594) começou a usar instrumentos de corda em música religiosa e, posteriormente, passou a claramente aproveitar todos os tipos de instrumentos e vozes.
Esta pintura, datada aproximadamente do ano 1520, mostra três mulheres fazendo música de  câmara, em ambiente doméstico, com um agrupamento instrumental variado: alaúde, flauta transversal e voz.

Filadelfio Puglisi, pesquisador que se aprofundou no assunto das flautas renascentistas, foi capaz de examinar uma coleção de flautas daquele período encontradas em Verona, na Itália. Através da comparação dos instrumentos encontrados, foi-lhe possível enumerar algumas características comuns a eles:

1.O orifício da embocadura era geralmente oval e menor do que o das flautas barrocas;
2.Para facilitar a digitação, os seis orifícios da flauta eram agrupados em dois grupos de três;
3.Todos os orifícios da flauta eram alinhados, o que permitia que o instrumentista segurasse sua flauta à sua direita ou à sua esquerda;
4.O tubo da flauta era quase cilíndrico;
5.As paredes do instrumento eram relativamente finas, fazendo com que o mesmo fosse leve;
6.As afinações dos instrumentos encontrados variavam um bocado, mais foram identificados dois grandes grupos: um afinado com o lá em 435hz (o dito "Kammerton", utilizado em música doméstica e festiva) e outro, mais numeroso, com o lá em 410hz (o "Chorton", utilizado em música religiosa), ou seja, um tom abaixo do "Kammerton".
Algumas das flautas renascentistas encontradas em Verona.

Quanto à prática musical, tanto os flautistas quanto os demais instrumentistas procuravam cultivar em seus respectivos instrumentos as qualidades da música vocal. O uso do vibrato era fortemente encorajado por Agricola e outros relatos apontam que os instrumentistas de sopro da época consideravam o vibrato (tanto o de ar quanto o de dedos) como elemento essencial do som e da expressividade. Flautistas renascentistas também davam grande importância à articulação dos sons. Assim como na fala, uma  articulação clara era considerada indispensável para uma boa execução. Jambe de Fer encoraja seus leitores a articularem todas as notas, até as mais rápidas, argumentando que quem não articula bem as sílabas ao falar soa como se estivesse bêbado e, portanto, a mesma atitude produz um efeito ruim na música. Outro aspecto importante do fazer musical renascentista era a diminuição, ou seja, a ornamentação improvisada. O instrumentista deveria ser capaz de ir além da música escrita, acrescentando à melodia original notas de improviso.

Como se pode notar, graças ao fato de flautas renascentistas terem chegado até nós – assim como exemplos de música escrita para elas – temos muito mais informações sobre o instrumento na Renascença do que na Idade Média. No entanto, não devemos pensar que já temos conhecimento sólido suficiente para saber como a flauta era de fato utilizada naquele tempo. Devido a fragilidade e antiguidade dos instrumentos encontrados, poucas são as pessoas que têm acesso a eles. Isso significa que não são muitos os que puderam estudá-los e são em ainda menor número aqueles que foram capazes de fazer réplicas confiáveis dos mesmos e aprender a tocá-los de acordo com o estilo da época. Além disso, não é fácil determinar as datas de fabricação de todos os instrumentos encontrados: alguns deles são bem parecidos com as verdadeiras flautas renascentistas, mas foram apontados como réplicas feitas no século XVII. O que sabemos sobre a flauta renascentista, portanto, está baseado na visão de um número pequeno de especialistas nos quais optamos por confiar.

Principais fontes:
POWELL, Ardal. The Flute. New Heaven and London: Yale University Press, 2002.
SOLUM, John. The Early Flute. Oxford: Oxford University Press, 1992. 

sexta-feira, 11 de maio de 2012

The history of the transverse flute - The Middle Ages

Before I start writing about the flute methods I own, a historical contextualization is necessary. The next three posts will be dedicated to the uses and the development of the transverse flute in the Middle Ages, the Renaissance, and the first century of the Baroque era - the moment in history in which the one-keyed flute begins to be largely employed. These posts will serve as basis to a better understanding of the sources I'm going to write about in the future. 

The transverse flute in the Middle Ages
            
Custom dictates that the history of our modern flute starts in 1700 with the advent of the baroque flute and with the printing of the first pieces of music written for that instrument. Taking that point of view, the precedent centuries seem impenetrable and remote, especially those of the Middle Ages (5th to 15th centuries).
          
All the knowledge we possess concerning the medieval flute comes from a handful of images and some textual fragments from the Middle Ages. No extant medieval flute was found so far, so we are unable to know how they sounded like or how they were played. Added to that, just a fraction of the medieval music was written down - and what was written lacks information related to which instruments should be employed or how to play the music. 

If we take fiddles and harps as models of comparison - instruments that appear very frequently in paintings and writings - the flute was clearly a rare instrument during the Middle Ages. But the extant flute iconography can't be interpreted literally: it was common for the artist to take a decision on how he should represent the flute based primarily on issues of the harmony and the composition of the painting itself, leaving the realism aside.

A miniature shown in a collection of songs published around 1340. The flautist holds her flute to the right, but only to harmonize better with the fiddle, making both instruments point to the image's central point. Most of the representations of flautists from the Middle Ages show the instrumentalists holding their instruments to the left and not to the right - like we can see above and like we do nowadays.

The interpretation of the written sources generates other kinds of problems. The word used to refer to the transverse flute applied, frequently, to recorders and whistle-like instruments. Besides that, looking for references of professional flute players in literature is a waste of time: at that time, musicians were not specialized in only one instrument, like most of us are today.

Many ancient images (many of them even more ancient than those of the Middle Ages) depicted flautists in mythological contexts. Greece, India, and Egypt have legends that associate the creation of the flute to deities: the Greeks with Pan, the Hindus with Krishna, and the Egyptians with Osiris. Among those legends, only the Greek legend of Pan belongs to the western mythological repertoire. However, Pan's flute was not a transverse one. Among those three cultures, Hindu culture was the only one to attribute the creation of a transverse flute to a god. 



The transverse Hindu flute might have traveled to Byzantium around the 10th century and then it was spread into Europe. References to the transverse flute (both in visual arts and literature) start to pop out only in the 12th century. Until the 14th centurty, however, the use of the flute was limited to the borders of the Holy Roman Empire - which territory corresponds roughly to today's Germany. Due to that territorial limitation, the transverse flue became known as the "German flute" when it reached other countries between the 13th and the 14th centuries. The flute seemed to be already in use in France (where it was known as "flûte d'Allemagne") by the end of the 13th century. Paintings show that the instrument was present in French and German military music around the 14th century. In Spain, the flute was already known in the mid-fourteenth century, but the instrument would only be introduced to Italians in the following century. 


The extant sources related to the transverse flute in the Middle Ages reveal that neither a consensus on how to build the flute or how to play it existed. The instrumentalists had to have a highly developed musical perception in order to be able to adapt the music they needed to play to the instrument they had in their hands at the moment. They should be able to, within a few minutes, identify where the tones and semitones of the flute were, identify the instrument's range, and play it accordingly. No fixed pitch existed for the flutes at that time - the pitch was different in each province, conditions under which every musical instrument was submitted to. Apparently, the only consensus was that the transverse flute should be held in a transverse fashion.

Main reference:
POWELL, Ardal. The Flute. New Heaven and London: Yale University Press, 2002.